quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

SARA de Bob Dylan - Perdoe a minha desconfiança

 

Bob Dylan já escreveu dezenas de canções de amor ao longo de sua carreira, algumas famosas como "Don't Think Twice, It's All Right", "One of Us Must Know", que adotam uma abordagem mais resignada e filosófica de um relacionamento fracassado. Outros, como "Girl from the North Country" ou "Boots of Spanish Leather", que levam para uma abordagem mais romântica, ainda que distanciada. Há aquelas, mesmo que poucas, como "It Ain't Me" ou "Just Like a Woman", que retratam uma rejeição. Durante seus anos de "retiro doméstico", ele compôs canções de devoção mais diretas, como "The Man in Me", "If Not For You" ou "Lay, Lady Lay". Por conta de sua fama e, consequentemente (ainda que fosse altamente relutante), pelo status de sua celebridade, muitos comentaristas tentaram associar suas canções aos seus relacionamentos mais conhecidos. Então se falamos de "Girl from the North Country", associamos a Echo Helstrom, sua "paixonite" de adolescência; "Boots of Spanish Leather" a sua namorada do início dos anos 60, Suze Rotolo (a mesma que aparece na capa de The Freewheelin' Bob Dylan); e outras inúmeras canções que ele compôs durante os anos de 1964-66 são sobre Joan Baez ou Sara Lownds - com quem ele se casou secretamente em Novembro de 1965. Dylan, que guarda sua vida privada de forma tão cautelosa, nunca gostou com que associassem as suas músicas com significados particulares, muito menos admitir que suas canções foram escritas para pessoas específicas.


(Bob Dylan em ensaio de fotos para a capa do álbum Desire, 1974)



Até no ciclo das canções do álbum Blood on the Tracks, ainda que escritas na época em que seu casamento com a Sara estivesse claramente em apuros, esconde uma mensagem de ambiguidade. Em Chronicles, Dylan afirma (duvidosamente) que aquele álbum não era sobre seu casamento, mas baseado em uma coleção de contos de Anton Tchekhov. Não é de se surpreender que um artista como ele, cujas obras e pronunciamentos públicos são analisadas meticulosamente, tente esconder detalhes reais de sua vida privada. Além disso, canções como "Boots of Spanish Leather", embora possam ter sido "inspiradas" em alguma mulher em particular, não a menciona pelo nome, portanto, podem ser associadas aos ouvintes pelos seus próprios relacionamentos e experiências. No entanto, quando Dylan lançou Sara, a última faixa do álbum Desire, pela primeira (e única) vez ele pareceu não deixar dúvidas aos ouvintes sobre para quem era a música. Todavia, sua afirmação subsequente em uma entrevista de que a música era dirigida à Sara bíblica, esposa do patriarca judeu Abraão, foi bastante não convincente, para dizer o mínimo. A canção foi, talvez por sua natureza intensamente pessoal, nunca mais performada por ele depois de 1976. Além da abordagem jazzística de Barb Jungr, também atraiu alguns covers, muitos deles em versões em Espanhol ou em Italiano.


(Bob e Sara Dylan em Woodstock, 1968 - Foto de Elliot Landy)



Sara é claramente uma canção autobiográfica. É um apelo muito comovente e desesperado, que se concentra na época tenra e feliz de seu relacionamento quando seus filhos eram muito pequenos. Não há nenhuma menção a um conflito matrimonial. Mas a música é tão obviamente sobre a própria vida de Dylan que a falta de subterfúgios ou ambiguidade é impressionante por si só. Desire é um álbum com canções onde cada uma delas são concebidas como pequenos "filmes" de vários gêneros. "Romance in Durango", "One More Cup of Coffee" e "Isis" são todas canções com temáticas de 'Westerns' mexicanos. "Joey" é um filme de máfia piegas. "Hurricane" é uma história corajosa e antirracista de "consciência social", enquanto "Mozambique" e "Black Diamond Bay" são contos cômicos ambientados em lugares "exôticos". Analisando por este contexto, "Sara" pode ser vista como um filme biográfico muito romantizado, onde consiste em diversas cenas estilizadas e felizes de um passado imaginado. A canção é descaradamente nostálgica e sentimental e é claramente pensada para "puxar as cordas do coração" de sua ex-esposa, para que ela o perdoe e volte com ele. 


(Bob Dylan em Rolling Thunder Revue Tour, 1974)



A canção também se difere da maioria dos trabalhos de Dylan por não ser tão complexa de se interpretar. Os seis versos iniciais consistem em cenas em tons de sépia de ocasiões felizes de um passado, apresentados para o ouvinte de forma tão clara e imagético evocativo. Cada verso é seguido por um refrão lamentoso e variável, onde Bob idealiza Sara e implora que ela retorne para ele. Dylan enuncia com bastante clareza, entregando uma performance verdadeiramente apaixonada. Seus solos de gaita são essencialmente eficazes. O tom geral da música, no entanto, é de profunda tristeza. De acordo com o biógrafo de Dylan, Howard Sounes, ele realmente pediu para Sara estar presente na sessão de gravação quando ele lançou a música pela primeira vez. O casal havia se reunido e Sara havia se tornado parte da turnê Rolling Thunder, interpretando o papel principal de Clara em Renaldo and Clara, o filme experimental de Dylan da turnê. Mas a reconciliação não durou e um divórcio confuso se seguiu. Apesar dos apelos sinceros de Bob para Sara, o clima predominante da música sugere que, no fundo, ele já sabia que seu casamento estava condenado. Quaisquer transgressões que ele cometeu (que certamente, na vida real, incluía seus casos com outras mulheres) nunca foram descritas em detalhes. A canção tem um ar de tragédia. O fato do Dylan, sempre bom em "deixar as coisas vagas" (assim como afirma Joan Baez em Diamonds and Rust), ter realmente exposto elementos da sua vida real acrescenta à pungência da música. Seu tom de triste pesar e arrependimento torna-a um verdadeiro arrancador de lágrimas. Mas ele nem sempre deixa claro que ele se considera responsável pelos problemas matrimoniais. 



(Bob e Sara Dylan chegando na Inglaterra, 1969)



A canção se inicia com uma simples, mas evocativa, descrição de uma memória emocional. Dylan está deitado em uma duna, numa época em que ...as crianças eram pequenas e brincavam na praia... Sara aparece por de trás deles ...Você sempre esteve tão perto... ele canta ...e ainda ao alcance... No primeiro refrão ele pergunta a ela ...O que foi que fez você mudar a sua mente?... Esta, é claro, uma pergunta retórica, cuja resposta ele não fornece. Em referência ao interesse de Sara ao Zen Budismo, ao qual Dylan já havia prestado homenagem anteriormente em "Love Minus Zero/ No Limit", ele a chama de ...tão fácil de olhar, tão difícil de definir... Dylan então recorre à sua memória de seus filhos brincando na praia. As descrições são simples, mas muito emotivas ...Eu ainda os vejo brincando com seus baldes na areia/ Eles correm para a água, para encher seus baldes...  Então ele dá um zoom para um close de cena ...Eu ainda vejo as conchas caindo de suas mãos/ Enquanto eles seguem um ao outro de volta para a colina... A imagem das conchas que as crianças recolheram caindo de volta para a areia é realmente comovente. Ela pode ser interpretada como se as crianças já estivessem em um processo de perder algo, mas - em sua inocência - não tivessem consciência de que isso estava acontecendo. Dylan tenta distrai Sara dessa imagem amedrontadora repetindo seu nome várias vezes no refrão, idealizando-a como ...doce anjo virgem... e como uma ...joia radiante, esposa mística... Mas, inevitavelmente, é a imagem ressonante de seus filhos brincando, com a associação da felicidade de sua família que agora está desfeita, que fica no imaginário do ouvinte - e talvez no de Sara - mais presente.


(Bob Dylan em estúdio na gravação de Buckets of Rain de Blood On The Tracks, 1975)



No terceiro verso, Dylan continua a produzir mais flashbacks evocativos, mostrando cenas de felicidade conjugal. Mas agora as imagens do passado vêm espessas e rápidas e estão ainda mais fragmentadas, enquanto ele parece buscar em desespero na sua memória ...Dormindo na floresta perto de uma fogueira à noite... é seguido por ...Bebendo rum branco em um bar em Portugal... então ele retorna com mais imagens sentimentais das crianças, que estão ...brincando de pular carneirinhos e escutando sobre a Branca de Neve... antes de cortar para uma "foto" de Sara ...no mercado em Savannah-la-Mar (um resort na Jamaica). Nas apresentações ao vivo da música, os versos dois a cinco são trocados para ...Você lutou pela minha alma... ele canta  ...e enfrentou as adversidades... E isto é seguido por uma rara auto depreciação ... eu era muito jovem para saber que você estava fazendo o certo... ele diz a ela antes de elogiá-la com termos inequívocos ...Mas você fez isso com a força digna dos deuses... Os novos versos podem não ter o Pathos dos que vieram antes, mas ele suprem um apresso prático para Sara - em particular, por salvá-lo de seu estilo de vida autodestrutivo - o qual antes esses elogios estavam ausentes. A referência de "deuses" dá a Sara poderes divinos, um tema que continuará ao longo da música. O próximo refrão, com sentimentos bastantes prosaicos de ...Sara, Sara, está tudo tão claro que jamais me esqueceria/ Sara, Sara, te amar é algo que eu jamais me arrependeria... é uma faca de dois gumes. Ele admite que ele nunca se arrependeria de amá-la, mas deixa o ouvinte imaginando sobre tantas outras coisas que não são ditas aqui e quais seriam esses "arrependimentos" que ele é incapaz de admitir.


(Contra capa do álbum Desire)



O quarto verso acaba sendo o mais chocante para qualquer fã do Dylan. Na primeira linha ...Eu ainda posso ouvir o som daqueles sinos metodistas... que é algo altamente evocativo, embora um tanto extraordinário. Então, ele segue dizendo ...eu tinha encontrado a cura, e tinha acabado de passar por tudo isso... Aqui Dylan aparece (pelo menos superficialmente) estar sendo demasiado honesto sobre a sua vida pessoal. O verso sugere que ele estava com vício em drogas, a não ser que ele esteja se referindo a um outro tipo de doença desconhecida (possivelmente alguma doença sexualmente transmissível). Mas o impacto disso, de alguma forma, está apagado pela próxima revelação ...Acordado por dias no Chelsea Hotel/ Escrevendo "Sad Eyed Lady of the Lowlands" para você... Aqui, pela primeira e única vez, ele faz referência a uma de suas músicas - e uma música de grande hit em sua carreira. Tudo isso, no entanto, pode ser um mero subterfúgio, de acordo com os músicos que participaram do álbum Blonde On Blonde, Sad Eyed Lady foi composta em estúdio enquanto ele trabalhava no álbum. E embora a famosa e épica balada contenha diversas referências conhecidas sobre Sara (Lowlands pode ser um jogo de palavras para Lownds, que junto com 'magazine husband' - *Marido da revista - faz referência a Hans Lownds, o primeiro marido de Sara que era jornalista), é discutível se a música é inteira "sobre" ela ou se a *Mulher de Olhos-Tristes é uma composição "sobre" todas as amantes de Dylan (ou até pode se referir ao próprio Dylan).


(Capa do álbum Desire)



Nada disso pode ser terrivelmente surpreendente para aqueles que acompanham o trabalho de Dylan. É esperado que ele apresente uma versão colorida e muito imaginativa de seu passado, assim como fez ao aparecer na cena folk, alegando ter saído de casa quando era adolescente e passando vários anos trabalhando em feiras de circos itinerantes. Em Chronicles, muitas dessas memórias são relembradas e parecem ser, no mínimo, exageradas. Mas ao fazer tal declaração sobre uma de suas músicas tão lendárias, Dylan aparenta estar "deixando uma parte de si" no verso ao revelar publicamente um detalhe tão específico, que normalmente ele guardaria a sete chaves para si mesmo. É, certamente, um detalhe impressionante para seus fãs, mesmo se a própria Sara acreditou ou não. No refrão que se segue, Dylan a tranquiliza dizendo que ...onde quer que viajamos, nunca estaremos separados... sugerindo que ele está se preparando para um futuro no qual eles realmente estarão separados. 


(A praia de Lilly Pond Lane)



Dylan continua o seu processo de mitologização ...Como eu te conheci?... Ele pergunta. Primeiro ele afirma que ...eu não sei... Mas é só mais uma pergunta retórica. Ele então declara orgulhosamente ...Um mensageiro enviado a mim em uma tempestade tropical... o que parece estar se referindo a Mercúrio, o Mensageiro Romano. Seguindo por outra imagem idealizada de Sara ...Você estava lá no inverno, o luar brilhava sob a neve/ E em Lilly Pond Lane, quando o clima se amornava... Lilly Pond Lane é uma praia localizada em East Hampton, em Long Island, no estado de Nova Iorque. Presumivelmente, esta é a localização da praia que aparece na música. Dylan agora parece estar sugerindo que a união deles foi algum tipo de processo místico, decretado pelos "deuses". Isso é amplificado pela bonita aliteratura da primeira linha do próximo refrão ...Sara, Sara/ Esfinge de escorpião em um vestido de algodão... outro tributo a sua mística e, aparentemente, confusa personalidade. Então, tendo construído um "status divino" para a sua esposa, ele prossegue para entregar, pela primeira vez, algum tipo de confissão de sua própria responsabilidade pelo o que aconteceu ...você deve me perdoar por minha desconfiança... 


(Uma Ninfa mirando seu arco para um jovem - Kauffman, Angelika - 1780)



Após uma pausa pungente de um solo de gaita, o verso final começa com o elegíaco de partir corações ...Agora a praia está deserta, exceto por algumas algas/ E um pedaço de um velho navio que jaz na costa... Tanto a praia vazia e o navio quebrado parecem simbolizar o estado do casamento deles. Depois ele faz mais elogios à Sara ...Você sempre respondeu quando precisei de ajuda/ Você me deu um mapa e uma chave para sua porta...  Sara é ainda mais "deificada" como uma ...ninfa glamorosa com uma flecha e um arco... O que parece ser uma referência a uma famosa pintura da artista suíça do século XVIII Angelika Kauffman, na qual uma ninfa mira seu arco em um pastor usando uma das flechas do Cupido. Dylan claramente espera que Sara magicamente revitalize seu relacionamento atirando uma dessas "flechas do amor".


(Bob Dylan performando em Houston, Texas, durante a turnê do Rolling Thunder Revue, Maio de 1976)


No entanto, parece improvável que isso realmente aconteça. Apesar dos apelos de Dylan, a magia em seu relacionamento já havia acabado. A música, que conclui com uma melodia de gaita bastante lamentosa, é trágica ao invés de edificante. Há uma forte sensação de que Dylan não está realmente lidando com os problemas do casamento. Mas na verdade, ele os está evitando ao não admitir nenhuma culpabilidade de sua parte, com exceção de sua própria "indignidade"; cuja confissão é corajosa, mas vaga. Os elementos trágicos que ocorreram dentro de seu casamento parecem não ter sido ditos. Infelizmente, a sua apaixonante e metafísica poesia e a sua súplica por perdão não desejarão que os problemas não existam mais. As canções de Dylan são frequentemente mal compreendidas por aqueles que não entendem o fato de que muito do que ele canta é expresso pela voz de um narrador, que é um personagem fictício. Então, os sentimentos expressos em suas canções não são necessariamente os do próprio Dylan. Em Sara, uma música que parece, a princípio - por uma vez, deixar de lado essas "máscaras", finalmente parece que ele ainda está cantando pela voz do narrador - neste caso, um personagem fictício chamado "Bob Dylan", que aqui se dirige à mulher que ele injustiçou como uma "deusa". Ao fazer isso, ele cria a sensação de desejo desesperado misturado com nostalgia chorosa, dando para a canção um grande poder emocional.



(Bob Dylan tocando na turnê Rolling Thunder Revue,1976)


Texto traduzido por: Cris del Mar
Texto de: Chris Gregory
Fonte: Sara - Forgive me my unworthiness


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